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"Acho que finalmente me dei conta que o que você faz com a sua vida é somente metade da equação. A outra metade, a metade mais importante na verdade, é com quem está quando está fazendo isso."

sábado, 1 de outubro de 2011

Segurança pública: presente e futuro - 1


O objetivo deste ensaio é responder a três perguntas:

1. Quais os problemas nacionais mais graves, no campo da segurança pública?
2. O que seria preciso fazer para resolvê-los ou minimizá-los? – isto é, para que o futuro fosse marcado por mais segurança, nos marcos ditados pelo respeito aos direitos constitucionais?
3. Caso não se implementem as políticas públicas aqui consideradas necessárias, quais seriam as conseqüências – ou seja, nesse caso, que futuro poderíamos esperar, quanto à segurança e aos efeitos mais amplos de sua deterioração, no âmbito, sobretudo, da sociabilidade urbana e das instituições democráticas?

Observe-se que ficarão de fora do conjunto do presente ensaio questões de imensa importância, como a política criminal em sua dimensão legal, o sistema penitenciário, o sistema socioeducativo, o Ministério Público e a Justiça, em suas interfaces com o campo institucional da segurança.

Por razões estritamente práticas, havendo disponibilidade reduzida de espaço, não serão discutidas formas de violência não criminal, ainda que sejam extremamente relevantes. Tampouco serão tratadas, aqui, questões teóricas mais amplas, relativas ao conceito de crime e violência, à inscrição da violência no Estado e nas estruturas sociais, e aos perversos processos de criminalização, na raiz e na ponta das desigualdades brasileiras.

Assinale-se também que a insegurança pública é, hoje, uma tragédia nacional, que atinge o conjunto da sociedade, e tem provocado um verdadeiro genocídio de jovens, sobretudo pobres e negros, do sexo masculino. A criminalidade letal atingiu patamares dantescos. Além disso, tornou-se problema político, sufocando a liberdade e os direitos fundamentais de centenas de comunidades pobres.

As principais matrizes da criminalidade

Várias são as matrizes da criminalidade e suas manifestações variam conforme as regiões do país e dos estados, como já foi dito. Reitere-se: o Brasil é tão diverso que nenhuma generalização se sustenta. Sua multiplicidade também o torna refratário a soluções uniformes. A sociedade brasileira, por sua complexidade, não admite simplificações nem camisas-de-força. Exemplos da diversidade: em algumas regiões, a maioria dos homicídios dolosos encerra conflitos interpessoais, cujo desfecho seria menos grave não houvesse tamanha disponibilidade de armas de fogo.

No Espírito Santo e no Nordeste, o assassinato a soldo ainda é comum, alimentando a indústria da morte, cujo negócio envolve pistoleiros profissionais, que agem individualmente ou se reúnem em “grupos de extermínio”, dos quais, com freqüência, participam policiais.

Na medida em que prospera o “crime organizado”, os mercadores da morte tendem a ser cooptados pelas redes clandestinas que penetram as instituições públicas, vinculando-se a interesses políticos e econômicos específicos, aos quais nunca é alheia a lavagem de dinheiro, principal mediação das dinâmicas que viabilizam e reproduzem a corrupção e as mais diversas práticas ilícitas verdadeiramente lucrativas.

Há investimentos criminosos significativos em roubos e furtos de carros e cargas, ambas as modalidades exigindo articulações estreitas com estruturas de receptação, seja para revenda, desmonte ou recuperação financiada. Há uma praga que corrói a confiança e propaga o medo nas cidades: os assaltos, nos bairros e, sobretudo, no centro das cidades, dos quais ninguém está livre, mas que afetam com maior freqüência e covardia os idosos.

Roubos a bancos, residências e ônibus, assim como os seqüestros, particularmente os “seqüestros relâmpagos”, também têm se tornado comuns e perigosos, em todo o país, porque, em função, também nesse caso, da disponibilidade de armas, essas práticas, que, por definição, visariam exclusivamente ao patrimônio, têm se convertido, com assustadora freqüência, em crimes contra a vida – a expansão dos “roubos seguidos de morte” ou latrocínios constitui o triste retrato dessa tendência.

Em todo o país, mesmo havendo uma combinação de matrizes criminais, articulando e alimentando dinâmicas diversas, tem se destacado o tráfico de armas e drogas, que cada vez mais se sobrepõe às outras modalidades criminosas, subordina-as ou a elas se associa, fortalecendo-as e delas se beneficiando.

Ainda há tempo para evitar que se repitam em outros estados as tragédias que se banalizaram no Rio de Janeiro, mas para isso é imperioso reconhecer que já há fortes indícios de que a matriz mais perigosa e insidiosa, que cresce mais velozmente, instalando-se nas vilas, favelas e periferias, e adotando o domínio territorial e a ameaça a comunidades como padrão, a matriz mais apta a recrutar jovens vulneráveis e a se reproduzir, estimulada pela crise social e pela fragilidade da auto-estima, é o tráfico.

Essa matriz da criminalidade tem assumido uma característica peculiar, ao infiltrar-se e disseminar-se como estilo cultural e meio econômico de vida, com seu mercado próprio e lamentavelmente promissor. Exige, portanto, trabalho policial investigativo no combate às redes atacadistas, ações policiais ostensivas na contenção do varejo, mas, sobretudo, requer intervenção social preventiva bem coordenada, territorialmente circunscrita e sintonizada com a multidimensionalidade dos problemas envolvidos.

Efetivamente, o tráfico de armas e drogas é a dinâmica criminal que mais cresce nas regiões metropolitanas brasileiras, mais organicamente se articula à rede do crime organizado, mais influi sobre o conjunto da criminalidade e mais se expande pelo país. As drogas financiam as armas e estas intensificam a violência associada às práticas criminosas, e expandem seu número e suas modalidades. Esse casamento perverso foi celebrado em meados dos anos 1980, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, ainda que antes já houvesse vínculos entre ambas.

A violência doméstica, especificamente a violência de gênero, que vitimiza as mulheres, assim como as mais diversas formas de agressão contra crianças, revelam-se, em todo o país, tão mais intensas e constantes quão mais se desenvolve o conhecimento a seu respeito. O dado mais surpreendente diz respeito à autoria: em mais de 60% dos casos observados, nas pesquisas e nos diversos levantamentos realizados no país, quem perpetra a violência é conhecido da vítima – parente, marido, ex-marido, amante, pai, padrasto etc.

Isso significa que essa matriz da violência, apesar de merecer máxima atenção e de constituir uma problemática da maior gravidade para os que a sofrem ou testemunham, seja por suas conseqüências presentes, seja por seus efeitos futuros (as pesquisas mostram que quem se submeteu à violência, na infância, ou a testemunhou, tem mais propensão a envolver-se com práticas violentas, mais tarde), não é acionada por
criminosos profissionais ou por perpetradores que constroem uma carreira criminal.

Essa característica implica a circunscrição da problemática, da qual se deriva a necessidade da implantação de políticas específicas, que não deveriam confundir-se com a mera repressão ou com a simples ação policial – ainda que ela seja, evidentemente, também necessária. O mesmo pode ser dito sobre a violência homofóbica e racista. Ambas requerem políticas específicas, que não se esgotem na repressão e que, inclusive, envolvam a requalificação prática e cultural dos próprios profissionais da segurança.

Sobre as causas

As explicações para a violência e o crime não são fáceis. Sobretudo, é necessário evitar a armadilha da generalização. Não existe o crime, no singular. Há uma diversidade imensa de práticas criminosas, associadas a dinâmicas sociais muito diferentes. Por isso, não faz sentido imaginar que seria possível identificar apenas uma causa para o universo heterogêneo da criminalidade.

Os roubos praticados nas esquinas por meninos pobres, que vivem nas ruas cheirando cola, abandonados à própria sorte, sem acesso à educação e ao amor de uma família que os respeite, evidentemente expressam esse contexto cruel. É claro que esses crimes são indissociáveis desse quadro social.

O mesmo vale para o varejo das drogas, nas periferias: juventude ociosa e sem esperança é presa fácil para os agenciadores do comércio clandestino de drogas. Não é difícil recrutar um verdadeiro exército de jovens quando se oferecem vantagens econômicas muito superiores às alternativas proporcionadas pelo mercado de trabalho e benefícios simbólicos que valorizam a auto-estima, atribuindo poder aos excluídos.

Por outro lado, os operadores do tráfico de armas, que atuam no atacado, lavando dinheiro no mercado financeiro internacional, não são filhos da pobreza ou da desigualdade. Suas práticas são estimuladas pela impunidade.

Em outras palavras, pobreza e desigualdade são e não são condicionantes da criminalidade, dependendo do tipo de crime, do contexto intersubjetivo e do horizonte cultural a que nos referirmos. Esse quadro complexo exige políticas sensíveis às várias dimensões que o compõem. É tempo de aposentar as visões unilaterais e o voluntarismo.

Como reduzir a violência criminal?

Há dois meios complementares de trabalhar pela promoção da segurança pública cidadã: através de políticas preventivas e da ação das Polícias (no caso dos Estados) ou de Guardas Civis (no caso dos municípios) – o governo federal pode atuar não apenas pelas polícias federal e rodoviária federal, mas pela indução, aplicando uma política nacional que proporcione meios para que se efetive a cooperação interinstitucional e para que se imponham exigências mínimas de qualidade na provisão dos serviços de segurança pública, o que envolve eficiência e respeito às leis e aos direitos humanos.

Dediquemo-nos, agora, à prevenção da criminalidade violenta. Começando pela apresentação de alguns pressupostos e de algumas implicações.

Políticas de prevenção da criminalidade violenta podem produzir efeitos rapidamente, a baixo custo (aqui, a referência são os municípios e seus governos, porque, por sua proximidade “da ponta”, acessibilidade, agilidade e capilaridade, constituem a instância mais adequada à execução de políticas preventivas).

Políticas que visam prevenir a violência criminal não são políticas estruturais, de longo prazo, destinadas a agir sobre as macroestruturas socioeconômicas do país. Geralmente, a suposição inversa provoca equívocos, mal-entendidos e dificuldades de toda sorte.

Em primeiro lugar, porque induz ao imobilismo: “enquanto não se eliminarem as grandes iniqüidades estruturais da sociedade brasileira, nada se pode fazer para conter a insegurança”, dizem aqueles cujo ceticismo se funda na crença de que ou se faz tudo, ou nada resta a fazer; ou se alteram as causas profundas e permanentes, ou estaríamos condenados a enxugar gelo.

Em segundo lugar, tal convicção, na medida em que nega a possibilidade de soluções a curto prazo, leva a população à descrença, à frustração e ao desespero – sendo, esses sentimentos, eles próprios graves fatores de risco e denso adubo para propostas autoritárias (do tipo: cercar as favelas, armar a população, erguer muros mais altos, trocar a segurança pública por soluções privadas, estimular a prática brutal e arbitrária do “justiçamento”, apoiar a brutalidade policial, instaurar a pena de morte, reduzir a idade de imputabilidade penal etc.), as quais terminam por realimentar o círculo perverso da violência.

Pelo contrário, a melhor experiência nacional e internacional demonstra, com fartura de exemplos e argumentos, a possibilidade de combinar ações públicas de natureza preventiva com presteza de resultados, o que pressupõe a possibilidade de que políticas de prevenção sejam eficientes mesmo não atuando sobre causas estruturais ou incidindo sobre macroestruturas.

Em outras palavras, há como agir de modo eficiente, em curto espaço de tempo e mobilizando poucos recursos, sobre as dinâmicas imediatamente geradoras daqueles fenômenos que desejamos evitar ou conter. A repressão não tem o monopólio da urgência e do pronto emprego, além de nem sempre ser eficiente. A prevenção pode ser ágil, rápida, barata e mais eficiente.

Poder-se-ia sempre ponderar: as políticas preventivas que não visam a mudanças estruturais são superficiais e não impedem o retorno do problema que se deseja evitar. É verdade. Mas elas salvam vidas, reduzem danos e sofrimentos, tornam a vida mais feliz.

Quando isso é feito, as políticas preventivas instauram padrões de comportamento, suscitam sentimentos e acionam percepções coletivas que se convertem, elas mesmas, em causas de situações menos permeáveis às pressões dos fatores criminógenos. Isto é, os sintomas podem matar o paciente e devem ser tratados, enquanto o paciente não está pronto para a cirurgia. Até porque, sem tratá-los, a cirurgia não será possível.

Em segurança pública, as conseqüências tornam-se causas no movimento subseqüente do processo social: determinadas condições favorecem a prática de crimes; os crimes expulsam empresas, o que aumenta o desemprego, ampliando as condições para o crescimento de certas formas de criminalidade etc. E o ciclo dá mais uma volta em torno do mesmo eixo.

O contrário também é verdadeiro: reduzindo-se a criminalidade e a intensidade da violência aplicada, fixam se as empresas, outras são atraídas, aumenta a oferta de emprego, as condições sanitárias e urbanísticas evoluem, e assim sucessivamente, na direção do estabelecimento de um círculo virtuoso.

Desse ponto de vista, conclui-se que agir tópica e superficialmente sobrecausas imediatas dos crimes, reduzindo o número de vítimas, a taxa de risco, o grau de propagação do medo, e a sensação de insegurança, acaba sendo muito mais que enxugar gelo, mesmo se as ações em pauta não atingem os núcleos estruturais dos problemas.

O crime torna-se causa do crime, pela mediação da economia e de outras esferas da vida social. Atuando se sobre o crime, interrompe-se uma dinâmica autofágica, porque se afeta, positivamente, o conjunto dos fatores que funcionam como causas mediatas e imediatas do crime.

Menos crime equivale a melhor economia, melhor qualidade de vida e, conseqüentemente, menos crime. Esse raciocínio se assenta no pressuposto, hoje amplamente aceito, de que o crime é causa da crise social e econômica, tanto quanto seu reflexo. Portanto, e curiosamente, agir contra o crime é incidir sobre suas causas.

Nesse sentido, perde relevância a distinção entre políticas preventivas estruturais e tópicas, ao menos na medida em que ambas interceptam dinâmicas que concorrem para a geração dos fenômenos que desejamos evitar. Ou seja, ambas são importantes e têm seu lugar. E não se justifica sacrificar as políticas tópicas em nome da suposta superioridade (ou, pior ainda, exclusividade) das políticas estruturais. Políticas preventivas eficientes dependem de diagnósticos locais (técnicos e interativos), gestão participativa, circunscrição territorial, autoridade política e articulação intersetorial.

Diagnóstico local

Não há modelos únicos e gerais, aplicáveis em todas as cidades de todo o país. Mas há condições gerais que devem ser observadas, para que se alcance um nível superior de eficiência. A primeira delas é justamente o cuidado com as generalizações. A qualidade de uma política depende da consistência de cada programa, cada projeto e cada ação. E essa consistência depende, por sua vez, do conhecimento de cada bairro, região da cidade, praça ou rua.

Qualquer que seja o diagnóstico local sobre a dinâmica da criminalidade, será sempre indispensável reconhecer a multiplicidade de dimensões envolvidas: desde a economia à saúde, da estrutura familiar às escolas, do cenário urbano à disponibilidade de transporte, das condições habitacionais ao acesso ao lazer, das oportunidades de emprego às relações comunitárias, do perfil psicológico predominante, em cada situação típica, ao potencial cultural presente nos movimentos musicais ou estéticos da juventude. Nada disso deve ser examinado de uma perspectiva genérica e abstrata, mas de modo bem concreto, segundo as manifestações específicas do território em questão – e de seus habitantes.

Intersetorialidade das políticas

O quadro que resultará do diagnóstico, em cada caso, exibirá vasta pluralidade de dimensões, ainda que as mais relevantes variem em cada contexto.

Assim como variam os contextos e as circunstâncias locais; e assim como variam as realidades dos mais de cinco mil e quinhentos municípios brasileiros. Se a pluralidade for uma constante, o objeto do diagnóstico será sempre complexo. Se o problema da criminalidade violenta é, necessariamente, multidimensional, a abordagem fiel a esta complexidade nos conduzirá à elaboração de políticas adequadas a esta complexidade, isto é, sensíveis à pluridimensionalidade.

Em outras palavras, a complexidade do problema exigirá políticas intersetoriais, capazes de dar conta das diversas dimensões que compõem a violência criminal. Políticas sintonizadas com a multidimensionalidade dos fenômenos são políticas multissetoriais ou intersetoriais.

FONTE

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