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sábado, 10 de fevereiro de 2018

Pretensão do Estado em Punir


Novas luzes sobre o procedimento administrativo disciplinar no âmbito da execução criminal. Examinam-se questões como a competência para instaurar e a forma de instruir o procedimento disciplinar para apuração de falta e aplicação de sanções administrativas no curso da execução penal.Pública.

RESUMO: O presente trabalho tem o objetivo de analisar o Procedimento Administrativo Disciplinar que ocorre no âmbito das casas prisionais, tendo como acusado aquele que cumpre pena no estabelecimento penal, de forma a delimitar, com exatidão, a quem compete cada ato, separando aquilo que compete ao Diretor da Casa Prisional e aquilo que compete ao Poder Judiciário. Da mesma forma, aproveita-se o tema para analisar a controvérsia sobre a “prescrição” da pretensão do Estado em punir administrativamente aqueles que estão sob a sua tutela.

PALAVRAS-CHAVES: Procedimento Administrativo Disciplinar, Divisão de Competências, Mérito do Ato Administrativo, Audiência de Justificação, Separação de Poderes, Prescrição.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Delimitação da competência do Diretor da Casa Prisional e da competência do Juízo da VEC – Proibição de análise do mérito administrativo pelo Poder Judiciário – Ofensa ao Princípio da Separação dos Poderes. 3. A prescindibilidade da audiência de justificação. 4. Consectários lógicos da decisão administrativa que reconhece a falta grave. 5. Ofensa ao Princípio da Legalidade e aos Princípios da Federação e da Separação de Poderes (CF). 6. Ofensa a dispositivos da legislação infraconstitucional. 7. A questão da prescrição envolvendo faltas disciplinares. 8. Conclusão. 9. Referências bibliográficas.

1 INTRODUÇÃO

A partir do julgamento do Recurso Especial n. 1.378.557 (Recurso Repetitivo), restou editada a súmula 533 do STJ, que passou a exigir a instauração de Procedimento Administrativo Disciplinar para o reconhecimento de faltas graves:

Para o reconhecimento da prática de falta disciplinar no âmbito da execução penal, é imprescindível a instauração de procedimento administrativo pelo diretor do estabelecimento prisional, assegurado o direito de defesa, a ser realizado por advogado constituído ou defensor público nomeado

Ocorre, contudo, que a súmula – isoladamente considerada – dá causa a prejuízos sérios às pessoas presas, as quais acabam por aguardar meses e meses (quiçá anos) pela realização de um PAD (Procedimento Administrativo Disciplinar), para, só então, terem a solenidade aprazada (sem mencionar o tempo de espera da própria solenidade, após a designação da data), tudo isso “regredidos cautelarmente” até a realização das chamadas “audiências de justificação” (uma espécie de prisão preventiva aplicada na execução penal que, muito embora conte com massivo apoio da jurisprudência, em verdade, não encontra amparo em nenhuma norma legal).

Antes da súmula, podemos dizer resumidamente que o tramitar processual acontecia da seguinte maneira. As faltas graves de fuga e acusação de crimes ficavam dispensadas do PAD, restando a exigência do procedimento administrativo para as demais faltas. Então, com ele (ou mesmo sem, quando se tratasse de fuga ou de crime), era feita mais uma audiência em Juízo. Porém, no caso gaúcho, as audiências em Juízo eram praticamente reservadas aos casos das faltas que não contavam com o procedimento da fase administrativa. Ou seja, nos casos em que havia PAD, não havia audiência judicial. Por outro lado, nos casos em que não havia PAD, era realizada uma solenidade na presença de um Juiz de Direito.

Hoje, após a edição da súmula, o trabalho está incoerentemente dobrado, pois: constatada a falta, é feito PAD para todas as espécies de infrações disciplinares (incluindo-se fugas e práticas de delitos), onde é ouvido o apenado e são produzidas as provas pertinentes, para então, depois (na chamada audiência de justificação perante o Juiz), o apenado ser novamente ouvido e serem novamente produzidas provas. Hoje, a autoridade administrativa reconhece ou não a falta disciplinar e pune o apenado administrativamente. Só que o Juiz da VEC também analisa a acusação de falta grave, instrui o feito, produz provas, ouve o apenado, para então decidir se reconhece ou não a prática de falta grave (e, em assim o fazendo, aplica aquilo que chama de “consequências legais”, o que no seu entender são penalidades de aplicação automática diante do reconhecimento da falta grave).

Ora, o exercício da ampla defesa e do contraditório – justamente os fundamentos que levaram a súmula a exigir o PAD para todo e qualquer caso – não pode ser mais prejudicial ao apenado, do que se ficasse sem aquele procedimento de defesa.

Hoje, no entanto, é exatamente o que vem acontecendo. Os apenados do sistema prisional estão sendo punidos por perseguirem seus direitos. A garantia do PAD, consagrada com a edição da súmula, acabou por ferir de morte outro princípio tão fundamental quanto, que é o da celeridade processual. E, como o direito envolvido aqui é a liberdade do indivíduo, a demora processual está a causar prejuízos incomensuráveis (quiçá irreparáveis) aos integrantes do sistema prisional.

De qualquer maneira, parte dessa problemática se esvai se olharmos para o acórdão que deu origem à súmula, a fim de entendermos os motivos que levaram os ministros do STJ a seguirem este caminho.

Resumidamente, e desde já adiantando a discussão, podemos enumerar que o STJ afirmou textualmente o seguinte:
  • o Juízo da VEC não tem competência para determinar a instauração de PADs
  • o Juízo da VEC, igualmente, não tem competência para reconhecer ou deixar de reconhecer faltas graves a competência para o reconhecimento de faltas graves é do Diretor do estabelecimento prisional
  • a competência para aplicar sanções ao apenado que praticar faltas graves é do Diretor do estabelecimento prisional
  • a competência do Juízo da VEC está restrita a aplicar (ou não) um ou alguns dos chamados “consectários legais” ainda, poderá o Judiciário exercer o controle de legalidade/constitucionalidade dos atos administrativos, quando provocado, sob pena afrontar a inércia da jurisdição consequência lógica disso é que os tais “consectários legais” não são de aplicação obrigatória em qualquer caso o apenado é ouvido pelo Juízo da VEC, em audiência de justificação (se necessário), para que este decida se aplica ou não os assim chamados “consectários legais”
  • a audiência de justificação é prescindível
De qualquer maneira, nos itens a seguir, exploraremos melhor a tese, com o que passamos diretamente ao seu exame.

2 DELIMITAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO DIRETOR DA CASA PRISIONAL E DA COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA VEC – PROIBIÇÃO DE ANÁLISE DO MÉRITO ADMINISTRATIVO PELO PODER JUDICIÁRIO – OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

De forma bastante objetiva, podemos extrair do acórdão em questão que as faltas disciplinares, por ocorrerem no âmbito das casas prisionais, estão submetidas ao crivo e à análise dos Diretores dos respectivos estabelecimentos. Somente a estes cabe a análise da falta, o reconhecimento ou não da mesma como falta grave e a sua respectiva punição. Ao Juízo da VEC (Vara de Execução Criminal), por outro lado, ao receber a comunicação administrativa de que foi reconhecida uma falta grave, cabe apenas analisar o que fazer com essa notificação, isto é, quais serão os efeitos para o PEC (Processo de Execução Criminal). Assim, abre-se ao magistrado a possibilidade de decidir se é o caso (ou não) de aplicar as consequências jurisdicionais que a lei prevê, quais sejam: regressão de regime, alteração da data-base e perda da remição (aliás, a lei sequer fala que deve haver audiência para tal desiderato).

Veja-se que ao Poder Judiciário não compete – sequer – a homologação (ou não) do PAD; afinal, ele não é órgão revisor da esfera administrativa. O procedimento administrativo é completamente autônomo em relação à função jurisdicional. Não existe uma atribuição do Judiciário para analisar, homologar, sancionar, etc., uma decisão administrativa. Para isso existe o Recurso Administrativo, previsto no art. 29 do RDP.

Nem mesmo a natureza mista da execução penal pode ser desculpa para a intromissão do Poder Judiciário na atividade administrativa das rotinas prisionais (onde se insere também a disciplina penitenciária), conclusão facilmente extraída da obra de Guilherme de Souza Nucci (2007b, ps. 941/942):

O entroncamento entre a atividade judicial e a administrativa ocorre porque o Judiciário é o órgão encarregado de proferir os comandos pertinentes à execução da pena, embora o efetivo cumprimento se dê em estabelecimentos administrados, custeados e sob a responsabilidade do Executivo. É certo que o juiz é o corregedor do presídio, mas a sua atividade fiscalizatória não supre o aspecto de autonomia administrativa plena de que gozam os estabelecimentos penais no País, bem como os hospitais de custódia e tratamento.” (o grifo é nosso)

De qualquer maneira, evidentemente que não se pode excluir o PAD da apreciação do Poder Judiciário, até mesmo por previsão constitucional (art. 5º, XXXV, da CF). Porém, admitir que o Poder Judiciário possa agir sem provocação, também importa em violação ao princípio da inércia da jurisdição (“ne procedat judex ex officio”). Dito de outra forma, o Juiz não pode receber o PAD e decidir homologá-lo ou não. Não lhe compete fazer isso.

O próprio RESP n. 1.378.557 deixa isso claro, quando o Min. Marco Aurélio Bellizze afirma:

Assim, embora o juiz da Vara de Execuções Criminais possa exercer, quando provocado, o controle de legalidade dos atos administrativos realizados pelo diretor do estabelecimento prisional, bem como possua competência para determinadas questões no âmbito da execução penal, não lhe é permitido adentrar em matéria de atribuição exclusiva da autoridade administrativa, no que concerne à instauração do procedimento para fins de apuração do cometimento de falta disciplinar pelo preso, sob pena de afronta ao princípio da legalidade. (pág. 24)

Trata-se de verdadeiro princípio do Processo Penal, mais especificamente da Jurisdição Penal. Buscando auxílio na definição de Aury Lopes Jr (2012, p. 447):

Como decorrência do sistema acusatório anteriormente explicado e para garantia da imparcialidade (princípio supremo do processo), a inércia da jurisdição significa que o poder somente poderá ser exercido pelo juiz mediante prévia invocação. Vedada está a atuação ex officio do juiz (daí o significado do adágio ne procedat iudex ex officio).

Portanto, veja-se que a jurisprudência deixa claro que o Juiz poderá analisar o caso “quando provocado”, ou seja, quando o ato administrativo for impugnado judicialmente. Somente mediante provocação é que o Poder Judiciário pode agir (“ne procedat judex ex officio”). Provocação de quem? Dos atores processuais que fazem parte do cenário processual penal: Ministério Público, Apenado, Defesa Técnica, etc.

Havendo provocação, daí sim compete ao Poder Judiciário o controle da legalidade/constitucionalidade dos atos e decisões proferidas pelo Diretor do presídio (função de controle dos atos administrativos). Não pode o magistrado, porém, substituir-se de ofício ao Diretor da casa prisional e, no caso de não concordar com a decisão administrativa, simplesmente proferir outra em seu lugar (como historicamente ocorre). Mesmo nesse caso, o Juiz não homologará ou deixará de homologar o procedimento. Ele analisará as alegações trazidas pelas partes e, então, caso verifique uma ilegalidade ou uma inconstitucionalidade, deverá ele anular o procedimento.

Veja-se que o Juízo da VEC não pode se intrometer na seara administrativa. Caso a direção do estabelecimento prisional decida que o fato está prescrito, que é (ou não é) falta grave, que não é o caso de apuração por qualquer outro motivo, então este tem total autonomia para assim agir. Na suspeita do magistrado de que possa a direção estar envolvida em ilegalidades, deve acionar outros meios de fiscalização. Mas não pode usar o apenado para tal controle.

Questões administrativas são resolvidas nesta seara exclusivamente, em nenhuma outra. As consequências dos atos administrativos para o processo de execução criminal, por outro lado, é que serão da competência do magistrado titular da VEC. Dito de outra forma, os efeitos penais do reconhecimento da falta é que serão submetidos à apreciação do Poder Judiciário (daí a natureza mista da execução penal).

Entretanto, não pode o Juízo da VEC adentrar na seara administrativa, sob pena de afrontar dispositivos legais e constitucionais.

Vejamos o voto condutor do aresto, da lavra do Min. Marco Aurélio Bellizze. São várias as passagens que podemos transcrever para ilustrar o argumento (oriundo do RESP n. 1.378.557 citado acima):

Nas disposições gerais da referida seção (Subseção I), os arts. 47 e 48 estabelecem que o poder disciplinar, na execução da pena privativa de liberdade, bem como na restritiva de direitos, será exercido pela autoridade administrativa a que estiver sujeito o condenado.

Assim, no âmbito da execução penal, a atribuição de apurar a conduta faltosa do detento, assim como realizar a subsunção do fato à norma legal, ou seja, verificar se a conduta corresponde à uma falta leve, média ou grave, é do diretor do presídio, em razão de ser o detentor do poder disciplinar, conforme disposto nos aludidos dispositivos legais.

Logo, a aplicação de eventual sanção disciplinar também será da atribuição do diretor do estabelecimento prisional

Corroborando esse entendimento, o art. 54 da LEP é claro ao estabelecer que as sanções dos incisos I a IV do art 53, quais sejam, advertência verbal, repreensão, suspensão ou restrição de direitos e isolamento na própria cela, ou em local adequado, serão aplicadas por ato motivado do diretor do estabelecimento.

Não se olvida que, em razão do cometimento de falta de natureza grave, determinadas consequências e sanções disciplinares são de competência do juiz da execução penal, quais sejam, a regressão de regime (art. 118, I), a revogação de saída temporária (art. 125), a perda dos dias remidos (art. 127) e a conversão de pena restritiva de direitos em privativa de liberdade (art. 181, § 1º, d, e § 2º).

Todavia, a regra geral estabelecida na Lei de Execução Penal é que a sanção disciplinar seja aplicada pelo diretor do estabelecimento prisional, ficando a cargo do juiz da execução apenas algumas medidas, conforme se depreende do parágrafo único do art. 48:

Dessa forma, constata-se que a Lei de Execução Penal não deixa dúvida ao estabelecer que todo o "processo" de apuração da falta disciplinar (investigação e subsunção), assim como a aplicação da respectiva punição, é realizado dentro da unidade penitenciária, cuja responsabilidade é do seu diretor, porquanto é quem detém o exercício do poder disciplinar.

Somente se for reconhecida a prática de falta disciplinar de natureza grave pelo diretor do estabelecimento prisional, é que será comunicado ao juiz da execução penal para que aplique determinadas sanções, que o legislador, excepcionando a regra, entendeu por bem conferir caráter jurisdicional.

Portanto, a competência do magistrado na execução da pena, em matéria disciplinar, revela-se limitada à aplicação de algumas sanções, podendo, ainda, quando provocado, efetuar apenas controle de legalidade dos atos e decisões proferidas pelo diretor do presídio, em conformidade com o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (CF/1988, art. 5º, inciso XXXV).

Dessarte, verifica-se que a defesa do sentenciado no procedimento administrativo disciplinar revela-se muito mais abrangente em relação à sua oitiva prevista no art. 118, § 2º, da LEP, que algumas decisões interpretam, sem base legal, tratar-se de audiência de justificação, tendo em vista que esta tem por finalidade tão somente a questão acerca da regressão de regime, a ser determinada ou não pelo juiz da execução.

Nota-se que os procedimentos não se confundem. Ora, se de um lado, o PAD visa apurar a ocorrência da própria falta grave, com observância do contraditório e da ampla defesa, bem como a aplicação de diversas sanções disciplinares pela autoridade administrativa; de outro, a oitiva do apenado tem como único objetivo a aplicação da sanção concernente à regressão de regime, exigindo-se, por óbvio, que já tenha sido reconhecida a falta grave pelo diretor do presídio.

Com efeito, conquanto a execução penal seja uma atividade complexa, pois desenvolve-se nos planos jurisdicional e administrativo, da leitura dos dispositivos da Lei de Execução Penal, notadamente do seu artigo 66, que dispõe sobre a competência do juiz da execução, conclui-se que não há nenhum dispositivo autorizando o magistrado instaurar diretamente procedimento judicial para apuração de falta grave.

Assim, embora o juiz da Vara de Execuções Criminais possa exercer, quando provocado, o controle de legalidade dos atos administrativos realizados pelo diretor do estabelecimento prisional, bem como possua competência para determinadas questões no âmbito da execução penal, não lhe é permitido adentrar em matéria de atribuição exclusiva da autoridade administrativa, no que concerne à instauração do procedimento para fins de apuração do cometimento de falta disciplinar pelo preso, sob pena de afronta ao princípio da legalidade. (os grifos são nossos)

Veja-se que a transcrição acima é longa mas necessária. O que resta evidenciado é que compete ao Magistrado com atuação na VEC apenas apreciar se é o caso de aplicação das sanções previstas na lei. Porém, a decisão sobre a instauração, a instrução e o reconhecimento acerca da existência da falta grave cabem exclusivamente ao Diretor do Presídio, que é quem detém o Poder Disciplinar.

O Min. Marco Aurélio Bellizze transcreve ainda trecho de doutrina especializada, a qual também se pede licença para reproduzir (JULIOTTI, 2011, p. 79):

O presente dispositivo estabelece que o poder disciplinar, na execução da pena privativa de liberdade, será exercido pela autoridade administrativa. E esse exercício pressupõe, evidentemente, a instauração do procedimento e a consequente decisão. Não pode o Juiz, bem por isso, invadir a esfera de atribuição dada ao administrador pela lei, sob pena de substituir por critérios próprios a opção dele quanto ao mérito administrativo. Só é dado ao Magistrado intervir para examinar a legalidade do ato, afastando vícios e resguardando direitos. (grifamos)

A corroborar essa orientação, pode-se citar igualmente a obra de Guilherme de Souza Nucci (2007b, ps. 941/942), a qual assevera com todas as letras:

O poder disciplinar é exercido pela autoridade administrativa (art. 47, LEP), o que confere o caráter misto à execução da pena (parte dela é conduzida pelo juiz; outra parte é fruto da administração do presídio).

As faltas apuradas serão devidamente comunicadas ao juiz da execução penal para produzir os reflexos na individualização executória da pena, podendo implicar regressão de regime, perda de dias remidos, impedimento de saída temporária, dentre outros (art. 48, parágrafo único, LEP). (o grifo é nosso)

Em outras palavras, o poder disciplinar é exercido pela autoridade administrativa. Ao juiz compete, tão somente, aferir as consequências penais daquele reconhecimento administrativo. É a lição expressa e categórica de Guilherme de Souza Nucci.

Concluindo seu voto, o Min. Marco Aurélio Bellizze analisou o caso posto em julgamento e afirmou com todas as letras:

Na hipótese dos autos, conforme se verifica do termo de audiência às fls. 20/22, o Juiz da Vara de Execução Penal da Comarca de Porto Alegre/RS, notificado da recaptura do apenado Fabiano Cougo, instaurou procedimento judicial para apurar o cometimento de falta grave pelo detento e, após a manifestação da defesa e do Ministério Público na audiência de justificação, reconheceu a prática de falta disciplinar de natureza grave, determinando a alteração da data-base para futuros benefícios, deixando, contudo, de regredi-lo para o regime mais gravoso, tendo em vista que o apenado já se encontrava no regime fechado.

Assim, o referido procedimento encontra-se em total descompasso com os dispositivos da Lei de Execução Penal, porquanto o magistrado usurpou a atribuição exclusiva do diretor do presídio para apuração e reconhecimento da falta grave, valendo ressaltar, ainda, que sequer havia a necessidade de realização dessa audiência judicial, em razão da impossibilidade de regressão do regime carcerário, não sendo a hipótese, por conseguinte, sequer de aplicação do art. 118, inciso I e § 2º, da Lei nº 7.210/1984. (grifamos)

Das transcrições acima, percebe-se que a delimitação de competências deve ser assim entendida:

Diretor da Casa Prisional: instauração, instrução e reconhecimento (ou não) das faltas disciplinares, aplicação de algumas sanções, representação ao Juiz sobre o caso;

Juiz da Vara de Execuções Criminais: realização de audiência para oitiva do apenado (se entender necessário, adiante demonstrar-se-á que a mesma é dispensável), aplicação de algumas sanções (igualmente, se verificar que é o caso).

Veja-se que, inclusive, em uma passagem do seu voto, o Min. Marco Aurélio Bellizze chega ao ponto de afirmar que a oitiva prevista no artigo 118, § 2º, da LEP, é chamada erroneamente – e sem base legal – de audiência de justificação. Afirma o Ministro que o equívoco decorre do fato de que a audiência referida não tem por finalidade justificar nada, nem analisar se o caso é de falta grave ou não. Na verdade, a audiência se presta, apenas, para deliberar acerca da regressão de regime, que será então determinada ou não pelo Juiz da execução:

oitiva prevista no art. 118, § 2º, da LEP, que algumas decisões interpretam, sem base legal, tratar-se de audiência de justificação, tendo em vista que esta tem por finalidade tão somente a questão acerca da regressão de regime, a ser determinada ou não pelo juiz da execução.

Aliás, permitir que o Juiz possa reconhecer como falta grave um fato que a autoridade administrativa não reconheceu dessa forma, é o mesmo que permitir que o Poder Judiciário possa se imiscuir no mérito de um ato administrativo. Ora, nosso sistema jurídico não permite tal situação, sob pena de afronta ao princípio federativo da repartição de poderes, previsto no artigo 2º da Constituição Federal: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

E tão séria é a importância do princípio, que foi elevado expressamente à categoria de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, incisos I e III, da CF).

Da jurisprudência do E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, retiramos que:

Conquanto seja possível a revisão judicial dos atos administrativos, o exercício do controle jurisdicional limita-se à legalidade de tais atos, sendo vedado ao Poder Judiciário apreciar o mérito destes, sob pena de ferir o princípio constitucional da separação dos poderes. (Recurso Cível Nº 71006082291, Segunda Turma Recursal da Fazenda Pública, Turmas Recursais, Relator: Rosane Ramos de Oliveira Michels, Julgado em 13/12/2016)

O mesmo ocorre no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, cuja matéria se encontra pacificada no âmbito da 1ª Seção (informativo 382):

A regularidade do processo administrativo disciplinar deve ser apreciada pelo Poder Judiciário sob o enfoque dos princípios da ampla defesa, do devido processo legal e do contraditório, sendo-lhe vedado incursionar no chamado mérito administrativo. (MS 14.134-DF, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 26/8/2009)

A 3ª Seção da corte Superior não diverge desse entendimento (informativo 300):

O controle judicial dos atos administrativos discricionários deve-se limitar ao exame de sua legalidade, eximindo-se o Judiciário de adentrar a análise de mérito do ato impugnado. (MS 12.629-DF, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 22/8/2007)

Ainda do âmbito do STJ, e mesmo que diga respeito a um PAD contra funcionário público (em razão de falta disciplinar no exercício da função), retiram-se valorosas lições que em tudo são aplicáveis ao PAD oriundo das casas prisionais:

Outrossim, o controle jurisdicional do PAD restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e a legalidade do ato, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, sendo-lhe defesa qualquer incursão no mérito administrativo, a impedir a análise e valoração das provas constantes no processo disciplinar. Precedentes. (MS 21.544/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/02/2017, DJe 07/03/2017)

Celso Antônio Bandeira de Mello (2007, p. 941) refere três possibilidades de controle do ato administrativo pelo Poder Judiciário: o controle dos motivos, da finalidade e da causa do ato. Quanto aos motivos, citando o eminente Caio Tácito, afirma o ilustre doutrinador (MELLO, 2007, ps. 941/942):

Em repetidos pronunciamentos, os nossos Tribunais têm modernamente firmado o critério de que a pesquisa da ilegalidade administrativa admite o conhecimento, pelo Poder Judiciário, das circunstâncias objetivas do caso. Ainda recentemente, em acórdão no RE 17.126, o STF exprimiu, em resumo modelar, que cabe ao Poder Judiciário apreciar a realidade e a legitimidade dos motivos em que se inspira o ato discricionário da Administração.

Se inexiste o motivo, ou se dele o administrador extraiu consequências incompatíveis com o princípio de Direito aplicado, o ato será nulo por violação de legalidade. Não somente o erro de direito como o erro de fato autorizam a anulação jurisdicional do ato administrativo.

Quanto à finalidade, verdadeiramente se trata da questão do desvio de finalidade do ato administrativo. Ou seja, será o manejo de uma competência em descompasso com a finalidade para a qual foi instituída. Um exemplo de desvio de finalidade trazido por Celso Antônio Bandeira de Mello seria a prática de ato pelo agente em razão de razões particulares, estranhas ao interesse público (MELLO, 2007, p. 944).

Por fim, quanto à causa do ato, trata-se de observar a relação de adequação entre os pressupostos do ato e seu objeto (MELLO, 2007, p. 945). Ou seja, é preciso que haja uma relação de causalidade, de compatibilidade lógica entre a sua causa (o fato que lhe deu origem) e o seu conteúdo.

Concluindo sua análise, refere o renomado doutrinador que este controle do Poder Judiciário jamais pode ir além dos limites de significação objetivamente desentranháveis da norma legal (MELLO, 2007, ps. 955/956). Isto é, não pode ir além de questões de legalidade. Para ele (MELLO, 2007, p. 956):

O campo de apreciação meramente subjetiva – seja por conter-se no interior das significações efetivamente possíveis de um conceito legal fluido e impreciso, seja por dizer com a simples conveniência ou oportunidade de um ato – permanece exclusivo do administrador e indevassável pelo juiz, sem o quê haveria substituição de um pelo outro, a dizer, invasão de funções que se poria às testilhas com o próprio princípio da independência dos Poderes, consagrado no art. 2º da Lei Maior.

Hely Lopes Meirelles comunga de idêntico entendimento, quando faz as seguintes afirmações em sua obra (1996, ps. 609/611):

É um controle a posteriori, unicamente de legalidade, por restrito à verificação da conformidade do ato com a norma legal que o rege.

Sua limitação é apenas quanto ao objeto do controle, que há de ser unicamente a legalidade, sendo-lhe vedado pronunciar-se sobre conveniência, oportunidade ou eficiência do ato em exame, ou seja, sobre o mérito administrativo.

O que o Judiciário não pode é ir além do exame de legalidade, para emitir um juízo de mérito sobre os atos da Administração.

A competência do Judiciário para a revisão de atos administrativos restringe-se ao controle da legalidade e da legitimidade do ato impugnado. Por legalidade entende-se a conformidade do ato com a norma que o rege; por legitimidade entende-se a conformidade do ato com a moral administrativa e com o interesse coletivo (princípios da moralidade e da finalidade), indissociáveis de toda atividade pública.

Talvez o autor que mais tenha aprofundado o tema do CONTROLE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS, tenha sido o Prof. Juarez Freitas. Em sua obra, o autor profere lições que não divergem dos doutrinadores anteriores (2004, p. 226): controle judicial haverá de ser o de “administrador negativo”, em analogia com o de “legislador negativo”, exercido no controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos. Porque, como dito, se é certo que o Poder Judiciário não pode dizer, substitutiva e positivamente, como o administrador deveria agir, está obrigado a emitir juízo sobre como não deveria agir, em função dos princípios superiores do sistema administrativo, não mais prosseguindo a posição passiva de outros tempos.

Logo, o que se tem no caso analisado (e que não foi dito de forma expressa pelo Min. Marco Aurélio Bellizze no julgamento do RESP 1.378.557) é uma evidente situação em que o Poder Judiciário, historicamente, vem se intrometendo na seara administrativa para julgar o próprio MÉRITO administrativo, ainda que disso não tenha se apercebido.

Com essas balizas fixadas, entende-se o porquê da necessidade do PAD. Será nele que haverá o reconhecimento ou não da falta grave. Depois, encerrado este procedimento, o feito será remetido a Juízo, quando então o Juiz:

Se provocado, anulará o PAD, por algum vício;

Na ausência de provocação determinará (ou não) a regressão de regime, a alteração da data-base e a perda da remição (mas não poderá se imiscuir na competência do Diretor do Presídio, reconhecendo ou não a suposta falta grave).

Assim, as atuais situações em que o Poder Judiciário ordena a instauração de PADs, homologa ou deixa de homologar procedimentos ou profere decisões em que reconhece fatos como faltas graves revelam-se absolutamente ilegais/inconstitucionais.

Autor: Everton Hertzog Castilhos ---- advogado do escritório Ribeiro Machado Advogados, em Porto Alegre (RS), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET)

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